Sobre amores-celulares

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L. Silva

Sentei-me no ponto de ônibus. Era tarde da noite, esperava o ônibus que me levaria para casa. Retirei um livro da mochila e comecei a ler.

De repente, sentou-se ao meu lado um rapaz e uma garota que parecia serem amigos. A garota encontrava-se desconsolada, estava desesperada e chorava horrores, um choro entrecortado por soluços.

O rapaz tentava consolá-la, dizia que tudo ficaria bem, que ela sairia daquela situação e tudo mais.

A curiosidade fez-me prestar atenção na conversa, a disfarçar com o livro enfiado na cara.

– Eu não posso mais suportar toda essa pressão! Eu não durmo, não como… não sei fazer mais nada da vida sem ele. Eu amo ele de paixão, eu amo ele demais! Um ano e meio juntos não é pouca coisa, estamos preparados, mas eles não entendem!

– Ai, amiga, eu nem sei o que falar, não sei o que eu faria numa situação dessas, viu. Realmente tudo isso é muito complicado, né.

– Mas não era pra ser complicado, o amor deveria superar tudo, mas meus pais não entendem. Que saco!

– Mas você já tentou conversar com eles?

– Claro que já, mas eles não me escutam, não ligam pros meus sentimentos. Dizem que sou muito nova pra amar, dizem que eu nem sei o que é amor de verdade.

– Difícil, né, amiga. Os pais são um porre mesmo, os meus também não entendem a escolha que fiz pra minha vida, a situação entre a gente era muito complicada, então, só me restou ir embora de casa mesmo e morar sozinho.

– Pois é! É o que eu quero fazer também, assim que eu puder eu vou embora de casa, não posso aguentar mais tudo isso.

– Faça isso mesmo, só assim seus pais vão te dar valor, só assim. Mas, você já fez 19 anos, por que ainda espera? Por que não vai embora logo de uma vez?

– Eu até queria ir, mas não consigo trabalhar e estudar ao mesmo tempo, meu curso exige muito de mim. Não dá! Além disso, eles não querem me dar uma mesada e nem pagar o meu aluguel, vê se pode!

– Que absurdo! Mas, na questão de trabalhar e estudar, eu sei bem como é, não é fácil. Na minha turma desistiu um monte de gente. Poucas pessoas sabem a barra que é estudar direito.

– Direito? Ué, tá doido? Você estuda administração, igual a mim.

– Ah, sim, mas eu estava falando em estudar direito, estudar certinho, se esforçar, sabe?

– Ah, tá. Entendi.

Nesse momento, quase me manifestei e disse para eles para voltarem ao assunto principal, pois, a curiosidade me consumia. Seja lá o que estivesse acontecendo com a garota deveria ser muito grave, levando em consideração o choro inicial e a decisão de ir embora de casa. Contudo, não fora preciso, logo eles retornaram ao assunto:

– Você sabe que esses dias ele comprou a passagem pra gente se ver, quer que eu vá até São Paulo na casa dele e tudo mais. Disse que vai me apresentar pra família dele e tal. Mas meus pais me proibiram, não me deixarão ir, você acredita nisso?

– Nossa, não acredito. Mas seus pais não deixaram vocês namorar?

– Não, eles nem sabiam, nem contei porque eu sabia que dariam chilique, ainda mais por termos nos conhecido pelo celular, pela internet. Contei tudo recentemente.

– Entendi. É complicado mesmo, amiga. Ai, nem sei o que eu faria se eu fosse você numa situação dessas, viu.

– Mas e se fosse você? O que faria?

– Ai, amiga, você sabe como eu sou, não quero te influenciar em nada não, mas se fosse eu, iria mesmo sem permissão, ia escondido e pronto!

– Eu até pensei nisso, mas não posso…

A garota desatou a chorar novamente. O amigo a abraçou e a consolava. Vi umas lágrimas rolarem no rosto dele também.

– Odeio ver você assim, amiga. Vamos lá, não desanima. Vamos pensar em alguma coisa, diz que vai pra minha casa, sei lá. Combina outro dia, a gente dá um jeito. Eu ajudo você a fugir pra ver ele.

– Eu queria tanto, eu amo ele tanto, você não sabe o quanto. Ele é o amor da minha vida, eu sei disso, apesar de não termos nos visto ainda, ele é tão carinhoso comigo quando trocamos mensagens e nos falamos pelo celular. Ele é um fofo!

– Corre atrás do seu amor, vamos lá! Vá escondido, eu vou falar com sua mãe, eu ajudo você.

– Eu não posso, por mais que eu queira, não posso…. se meus pais descobrirem minha vida estará arruinada, não posso…

– Ai, amiga, eles não vão saber. Mas mesmo que saibam, o que pode acontecer de tão grave assim? Eles te baterem? Você ficar de castigo? Isso não vale a pena para ver o amor da sua vida?

– Não é isso, não é nada disso. Mas se eu for escondida e eles descobrirem, minha mãe disse que não me dará mais o Iphone 6 que tinha me prometido. Não posso correr esse risco, olha só como está o estado do meu celular, todo trincado. Eu preciso dum celular novo, não tem jeito. Mas eu amo ele de paixão, não sei o que vou fazer.

– Que situação, hein. Nossa, não sei nem o que dizer…

Ambos se abraçaram e voltaram a chorar. Não aguentei e acabei por soltar umas risadas. O rapaz me olhou feio, eu disfarcei e enfiei a cara no livro para rir às escondidas. A minha sorte é que meu ônibus logo chegou.

Hoje em dia, Shakespeare poderia ter dado um novo final para Romeu e Julieta, bastava enfiar um celular no meio da história.

Amores e celulares são muito parecidos, ambos precisam de conectividade, apresentam diversos recursos, são companheiros inseparáveis e possuem seus joguinhos. Contudo, um amor nunca será párea para um celular, pois eles podem ser trocados a qualquer momento, sem remorsos ou ressentimentos.

A lição aprendida desse episódio me lembra muito uma velha frase da minha querida vozinha: em terra de superficialidade, o amor vira um acessório.

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