Pra Mim – João Paulo Hergesel

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“Pra Mim” é um conto oriundo da oficina literária ministrada pela escritora Adriana Lisboa, no primeiro semestre de 2015. Foi publicado no livro “14 novos autores brasileiros”, organizado pela mesma escritora.

 

O aeroporto era um lugar tão grande para alguém tão pequeno como ele. Aquele monte de tevês, todas falando ao mesmo tempo, anunciando horários de partidas e chegadas. Aquela multidão andando de um lado para o outro, sempre com pressa de se despedir de alguém ou de se reencontrar com o ninguém trazido pela esperança frustrada. Mas ele continuava parado, em silêncio, sentindo-se amarrado pelo olhar responsável da comissária, carregando nas costas uma mochila de super-herói e segurando nas mãos uma boneca de trança loira e vestido rosa.

Os olhos corriam, desordenados, arregalados, assustados. Dava medo aquela solidão. As pessoas continuavam indo e voltando, ioiôs de braços e pernas, sem se importar com a presença minúscula que se mantinha em pé próximo do portão de desembarque. Não abria a boca, mas as sobrancelhas denunciavam que ele estava triste – tristeza que não era percebida por ninguém, porque ninguém queria percebê-la/percebê-lo. Parecia que a solidão, o congelamento, a indiferença duraria para sempre, mas o homem de bigode correu até ele.

– Tu tá aí faz tempo? O tráfego tava ruim, teve uma pechada, senão eu chegava antes.

O menino balançou a cabeça que sim, talvez para responder à pergunta do começo, talvez para concordar com a declaração do final. Talvez as duas coisas. Talvez nenhuma delas. Nem as sobrancelhas revelavam. A comissária se despediu com um sorriso cansado, e o homem o ajudou com a mochila.

– E essa boneca aí? Pra quem é?

O menino fez a cara com que já estava, e o homem insistiu:

– Pra quem é a boneca, Kadu? Fala com teu pai!

– PRA MIM – o menino falou de uma vez.

O pai fez que não ouviu, tomou o menino pela mão (a outra ainda segurava a boneca) e o arrastou em direção ao banheiro:

– Vamos fazer xixi que a viagem de volta é longa e não quero ninguém molhando o banco de trás do carro.

Não se importaram que a boneca entrou no banheiro masculino.

 

***

 

Na mesa de jantar, os dois comiam em silêncio, na companhia inusitada da senhorita de tranças loiras e vestido rosa. O pai, ainda incomodado, decidiu perguntar novamente para quem o garoto tinha comprado a boneca. Kadu manteve-se em silêncio, o pai perguntou novamente, Kadu não respondeu. Até que a pergunta foi repetida em tom mais alto, e Kadu explodiu.

– JÁ DISSE! PRA MIM!

O pai ficou nervoso. Pegou a boneca da mesa e a arremessou contra a parede, uma bola de squash envolta em roupinhas de brinquedo. O rosto ficou amassado, uma deformidade que não poderia ser corrigida nem com cirurgia em plástico. Mas Kadu a juntou e, com uma massagem especial que só ele sabia fazer, deu um jeito de disfarçar o dano imerecido.

Ao ver que o filho ainda estava com a boneca, o homem decidiu atirá-la pela janela, no quintal, uma cuspida de unha roída que não se quer engolir. A poça de lama, ótima anfitriã que sempre foi, estava esperando para recebê-la e sujar os cabelos loiros. Mais uma vez, Kadu foi ao resgate: lavou, secou e penteou a boneca para deixá-la quase que como nova.

Então, o pai jogou a boneca no lixo, como um pedaço de tralha qualquer. O feijão podre, disposto a lhe fazer companhia, passou seu odor para o tecido do corpo e a tornou fedegosa. Mas Kadu borrifou alguns mililitros de perfume para camuflar o cheiro ruim.

Por fim, o pai rasgou a boneca na frente do filho. Fez questão de arrancar os braços e as pernas, retorcer a cabeça e jogar nos pés do menino que, descalço, pedia, por favor, para que ele parasse. Não entendia a revolta do pai… Será que gente crescida tem o costume de ser assim quando acontece algo fora da agenda?

– Vamos ver se agora tu aprende. E para de chorar, senão vai levar uma tunda de laço.

O menino se conteve. Aproveitou quando o pai foi tomar banho e abriu escondido a máquina de costura para pegar de lá uma linha, uma agulha e um tubo de cola. Passou a noite trancado no quarto, remendando o corpo da boneca e colando no tecido os braços, as pernas e a cabeça. Caiu no sono no início da manhã e logo acordou com a voz do pai, áspera, chamando para irem ao cemitério. Com medo de que o homem machucasse outra vez a loirinha, Kadu a escondeu na mochila de super-herói.

 

***

 

Naquela manhã de inverno gaúcho, lembrou-se da última vez que tinha falado com a mãe, antes de o mandarem para a casa da tia, em São Paulo. Lembrou-se de como a abraçou, envolvendo os braços nos braços dela e apertando o mais forte que conseguia, como se fosse um bebê elefante entrelaçando a tromba na tromba da mamãe elefante. Tinha visto essa cena em Dumbo, se não estava enganado.

– Fica aí que vou acender uma vela no cruzeiro – o pai avisou, interrompendo o reencontro imagético do filho.

Kadu terminou a ave-maria que rezava com as mãos juntas diante do túmulo da mãe. Olhou para a lápide e reconheceu cada sílaba do nome dela. Desviou o olhar para a plaquinha ao lado: “YASMIM – NATIMORTA”. Achou a palavra difícil de ler e estranha demais para ser um segundo nome ou um apelido, mas não quis pensar muito nisso. Caso se lembrasse, perguntaria ao pai depois.

Sussurrou um santo-anjo-do-senhor para a menina. Fez o sinal da cruz, abriu a mochila e tirou a boneca, já maltratada e sem brilho, que nem dava mais vontade de brincar, e colocou em cima do jazigo. Falou bem baixinho, num segredo de irmãos:

– Mim, lembra quando eu tava com a mão na barriga da mãe, e tu chutou, e a mãe sorriu e disse que ia dar uma bonequinha igual à Cinderela porque tu ia ser uma princesinha? O pai não ouviu porque tava trabalhando, e eu só consegui achar essa aqui, de trança loira e vestido rosa, pra comprar no aeroporto. Não entendi por que o pai ficou tão nervoso quando falei que era pra ti, Mim. Mesmo assim, eu trazi. Desculpa se não é como a mãe prometeu.

Essa conversa, o pai não ouviu, porque estava distante. E Kadu não tinha motivo para contar depois. Preferiu guardar para si as palavras ditas por ele e o beijo gelado que sentiu da irmãzinha em forma de brisa na bochecha.

João Paulo Hergesel
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