Nos Confins da Cochinchina – João Paulo Hergesel

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Nos Confins da Cochinchina é um conto premiado com menção honrosa no VI Concurso Literário Oliveira Caruso – edição 2017.

 

 

Já estava cansada de ficar sentada na cama, abraçando o travesseiro e deixando as lágrimas rolarem pela minha face. Tentei enxugá-las na fronha, mas a capa plástica impediu. “De que me adianta ter um travesseiro”, eu pensava, “se nem posso enxugar minhas lágrimas nele?”.

Tomada pela melancolia, por causa de uma briga idiota com o meu namorado, eu me perguntava se aquele canalha e traidor era merecedor do meu sofrimento. Encontrar uma resposta, porém, era praticamente impossível no momento. Minha única vontade era a de dormir intensamente e acordar apenas quando meus problemas já estivessem resolvidos.

As lágrimas não cessavam e, mesmo com a vista embaçada, enxerguei que ao meu lado estava o ridículo mico-leão-dourado de pelúcia que havia ganhado como presente de aniversário dele. Irritada e com vontade unicamente de afastar todas as lembranças do cretino e ordinário, peguei o mico pelo rabo e o arremessei com toda a força contra a parede. Essa sensação de maltratar alguém, ainda que alguém irreal, não amenizou o meu estresse; ao contrário, fez minha consciência pesar.

Perante as situações não resolvidas, deixei o travesseiro num canto, levantei e caminhei até a cômoda. Abri a primeira gaveta e tirei de lá uma cartela de calmantes. Com certeza, aquela não era a maneira correta de me livrar da dor de uma separação, mas era a única a que tinha acesso no momento.

Destaquei todos os comprimidos e os coloquei na palma da mão. Fiz um movimento para arremessá-los à boca, mas um barulho incomum distraiu minha atenção. Assustada, fechei a gaveta vorazmente e me virei para ver a origem do som.

Na esquina do quarto, exatamente no cantinho entre duas paredes, o mico-leão que eu arremessara adquiria vida e se levantava curiosamente. Ficou sobre dois pés, sacudiu a poeira do corpo e, balançando a juba ruiva, correu diretamente para debaixo da cama.

Fiquei em estado de choque. Quem em mim se atrevesse a tocar se eletrizaria. No entanto, eu não podia deixar aquele acontecimento passar em branco; eu precisava descobrir o que é que o mico faria debaixo da cama.

Engatinhei até a cama e mergulhei naquela escuridão empoeirada. Jamais tinha imaginado que o espaço ali era tão amplo. Só estando embaixo de uma cama para saber como o lugar é espaçoso.

Continuei engatinhando e tossindo por causa da poeira acumulada que parecia aumentar a cada centímetro que eu adentrava. Tudo estava num negrume total e eu, inocentemente, caí na armadilha de um buraco oculto e imprevisto. Quando dei por mim, estava descendo até onde nem fazia ideia.

A queda acontecia lentamente. Decerto, eu caía em direção contrária ao vento, pois me sentia tão leve e vagarosa ao despencar. Eu ia descendo, descendo. “Puxa! Agora eu sei como se sente um óvulo menstruado”, pensei.

Mente de adolescente é tão criativa e pervertida. O mais assustador foi que a criatividade e a perversão estavam além da minha imaginação. Bastou que eu fizesse a asquerosa comparação que pousei tranquilamente num cheiroso e aconchegante absorvente branquinho tamanho família.

Levantei e fiquei diante de um longo e escuro corredor, do qual não conseguia ver o fim. No chão, o início de uma amarelinha. De repente, a voz conhecida de um cantor baiano.

— Oxente, Alice! Sê bem-vinda ao jogo. As regras, tu já conheces, mas vale lembrar a mais importante, que é “não pises na linha”.

— O que acontece se eu pisar?

— Boooooa pergunta! Se pisas na linha, vai estragá-la, e a amarelinha se tornará apenas amare.

Não pareceu uma coisa muito significativa. Isso me deixou despreocupada, porém senti que havia algo mais por trás dessa facilidade. Perguntei o que aconteceria comigo se a amarelinha se transformasse em amare.

— Boooooa pergunta! Amare é “amar” em italiano, portanto, se pisas na linha, tu te sentirás incendiada pelo fogo do amor.

A consequência explícita — receber amor — era um bom motivo para eu pisar propositalmente na linha. Antes de eu começar o jogo, porém, um livro surgiu misteriosamente em minhas mãos. Era uma coletânea de um poeta chamado Mamões. Abri em uma página e me deparei com um poema que falava justamente sobre o amor e o fogo:

 

Amor é fogo que arde na mulher.

É ferida que dói mesmo com Merthiolate.

É um contentamento por chocolate.

É dor que desabrocha na Praça da Sé.

 

Voltei a refletir sobre como agiria ou deixaria de agir e, inesperadamente, minha gargantilha rebentou, gerando um clima de mistério e caindo com exatidão sobre a linha do primeiro quadro. Não demorou a que uma chama imensa brotasse do chão e queimasse totalmente a indefesa bijuteria. Compreendi, com um exemplo a meio centímetro de mim, que eu seria incendiada no sentido denotativo, se errasse o passo.

— Boooooa sorte! — a voz gritou, pouco antes das luzes se acenderem e revelarem um corredor infindável. No chão, a amarelinha se seguia até perder-se no horizonte.

Comecei a pular cautelosamente, sem saber aonde iria parar.

Cada quadro recebia um número, assim como toda amarelinha. Cheguei exausta ao número 100 e tive de ficar equilibrada num pé só. O desenho havia terminado, ou melhor, estava seguido de um imenso retângulo quadriculado, como um tabuleiro de xadrez.

— O que faço agora? Se eu pular no retângulo, é certo que pisarei em alguma linha.

— Boooooa incineração! — e finalizou com uma risada maléfica digna das meias-irmãs da Cinderela.

Suportei o máximo que pude apoiada na perna direita, mas quando ela começou a formigar, não teve mais jeito: fui obrigada a saltar. Minha esperança era conseguir atravessar o retângulo, então joguei meu corpo com todo o impulso possível para frente, mas, antes de eu cruzar o traço final, caí sobre mais de dez linhas que faziam ziguezague.

Ao redor, o fogo surgiu do chão. Comecei a suar antes mesmo de sentir o calor. Não havia para onde fugir, o fogo estava se alastrando rápido demais, eu já estava a um passo de ser consumida pelas chamas.

Não houve dor, não senti meu corpo aquecer, nem percebi cheiro de queimado. Uma chuva de prata caiu repentinamente e apagou o todo o fogo. Além de não ser chamuscada, ainda fiquei prateada. Após limpar meu rosto que estava como uma moeda de cinquenta centavos, abri os olhos e fiquei cara a cara com três portas coloridas. Elas tinham cores de frutas tropicais: uma era vermelha como melancia; outra era amarela como banana; outra, verde como kiwi.

A primeira porta estava trancada. “Vermelho simboliza pare”, pensei. “É melhor eu tentar a segunda porta; por ser amarela, talvez tenha algo em que eu deva prestar atenção.” Abri a segunda porta e me deparei com uma lagarta que, ironicamente, usava uma gravata borboleta no pescoço. Isso lhe dava um ar de alto garbo e elegância e indicava que ela era macho.

Aproximei da lagarta e, de repente, uma luz se acendeu. Percebi que estava em um palco, a alma cheirando talco, e ao meu redor havia uma plateia. Quando pude me dar conta do que estava acontecendo, toda atenção já estava direcionada a mim — eu me tornara protagonista de uma peça teatral.

 

ALICE: Oi. Você sabe onde eu estou?

LAGARTA: Na Cochinchina, oras.

ALICE: Você sabe, então, por que é que eu não consigo me achar nesse mundo?

LAGARTA: Adolescentes são assim: não conseguem se encontrar.

ALICE: Mas, no meu caso, não se trata de um problema da idade. Tem acontecido alguma coisa que não sei como explicar.

LAGARTA: Poupe-me de seu blá-blá-blá e soletre o alfabeto. Vamos ver o que acontece.

ALICE: O.k.: a, b, c, e, f, g… a, b, c, e… a, b, c, e… a, b, c, e… Por que não consigo soletrar a letra d?

LAGARTA: Talvez ele tenha se cansado de ficar com você. Mas veja pelo lado bom: você viverá sem dores, drogas ou discórdias.

ALICE: E Deus? Como viverei sem Deus?

LAGARTA: Não se preocupe. Apenas o d minúsculo se afastou; garanto que seu D maiúsculo continua na ativa. Por que você não soletra o alfabeto em maiúsculo?

ALICE: A, B, C, D, F, G… A, B, C, D, F, G… Ah, não! Agora perdi meu E maiúsculo.

LAGARTA: Relaxe! Ele provavelmente está junto ao seu d minúsculo.

ALICE: Afinal, onde eles estão?

LAGARTA: Garanto que estão no Ed.

ALICE: Que Ed?

LAGARTA: Eu. Prazer. Sou Ed, a lagarta que você abandonou na infância.

ALICE: Como eu poderia ter abandonado você, se nunca tive uma lagarta quando criança.

LAGARTA: Todos têm uma lagarta quando criança.

ALICE: Eu não tive.

LAGARTA: Ah, teve!

ALICE: Não tive.

LAGARTA: Teve!

ALICE: Não tive! Ponto final.

LAGARTA: Pula uma linha, parágrafo, travessão. Teve, sim!

ALICE: Se tive, por que é que não me lembro de ter tido?

LAGARTA: Ninguém lembra que teve. Na verdade, ninguém sabe que teve, mas que teve, teve.

ALICE: O.k.! Então tive. Só que, além de não ter percebido que tinha, não percebi também que abandonei.

LAGARTA: Todos abandonam. Ninguém percebe que abandona, mas que abandona, abandona.

ALICE: Explique melhor.

LAGARTA: Toda criança tem uma lagarta de seis patas dentro de si. Cada pata representa uma característica boa do ser: ingenuidade, sinceridade, bondade, lealdade, simplicidade e outros-dades. Ao se tornar adolescente, a pessoa aprende a mentir, passa a ter malícia, deixa de ser humilde… A lagarta perde as patas aos poucos e se transforma numa borboleta que faz o jovem sentir vontade de voar.

ALICE: Mas eu não perdi todas essas qualidades… Eu ainda tenho algo da minha infância.

LAGARTA: Se é assim, então porque não recita alguma cantiga infantil?

ALICE: É pra já!

 

Ciranda, cirandinha,

Pirulito que já bateu,

Papai foi pra roça

Mas o gato não morreu.

 

LAGARTA: (estala a língua, som de “tsc, tsc, tsc”).

ALICE: Quer dizer, então, que agora tenho uma borboleta dentro de mim?

LAGARTA: Sim. Agora você tem a Edna. Ela ficará alguns anos com você, até você abandoná-la.

ALICE: Também a abandonarei? Quando?

LAGARTA: Quando você morrer.

ALICE: Ai, que horror!

LAGARTA: Por que horror? Todo mundo morre. Alguns fingem que não morrem, mas que morrem, morrem.

ALICE: Então, quando eu morrer, não viverá mais nenhum inseto dentro de mim?

LAGARTA: Teoricamente, não. Mas, na prática, seu corpo ficará com algo que tem um nome que é derivado de Edna.

ALICE: Que algo?

LAGARTA: Nada.

ALICE: Pode contar.

LAGARTA: Já contei.

ALICE: Contou nada.

LAGARTA: Mas é isso: nada é o algo.

ALICE: O algo é nada?

LAGARTA: Isso, nada.

ALICE: Mesmo assim tem nome?

LAGARTA: Tem.

ALICE: Como se chamará?

LAGARTA: Ednada.

 

Dito isso, Ed bocejou bem grande e engoliu a si próprio. A plateia aplaudiu de pé. Eu saí correndo, de volta ao ponto de partida.

Olhava para a terceira porta, a verde, e torcia para que não tivesse algo muito maluco atrás dela. Quando abri, meus ouvidos latejaram com o som alto de pandeiros sendo batucados com força. Não se tratava de uma roda de samba, mas de um desfile de carnaval.

Em cada ala, uma espécie de bicho: onça-pintada, lobo-guará, arara-azul… até meu mico-leão-dourado estava lá, numa ala própria para micos-leões-dourados. Enquanto o país pensa que eles correm risco de extinção, na verdade eles se escondem para carnavalizar em qualquer época do ano.

Tapando as orelhas com a mão, tentei atravessar o desfile para ver se encontrava uma saída, mas não vi nada de relevante: apenas uma parede coberta com folhas de bananeira. O mico-leão-dourado, vendo meu desespero, correu até mim para me ajudar.

— A cortina.

— Que cortina?

— Vá até aquela cortina — e apontou para as folhas de bananeira — e diga as palavras mágicas.

Antes que eu pudesse perguntar quais eram as palavras mágicas, ele já havia voltado ao desfile.

Obediente às ordens de um mico-leão, fui para trás das folhas que ele prefere chamar de cortina e peguei um papel que estava dobrado perto de meus pés. Li o texto em voz alta:

 

C ansei desse lugar

O usado e agora quero

R etornar à minha casa.

T udo voltará ao seu

I ndicado lugar

N aturalmente,

A ssim que eu piscar.

 

De repente, olhei em volta e percebi estar deitada no chão do quarto. Meio zonza, levantei e entendi que as loucuras foram apenas alucinações provocadas pelo remédio que tomei. Prometi a mim mesma que jamais faria isso novamente, sorri para o mico-leão-dourado que saía de baixo da cama e fui para a cozinha para beber um pouco de água.

João Paulo Hergesel
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