Nectarinas em árvore caída que levou consigo a cada de um esquilo sentimental – João Paulo Hergesel

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Nectarinas… é uma crônica oriunda da oficina literária ministrada pela escritora Adriana Lisboa, no primeiro semestre de 2015. Contempla o livro “Nectarinas”, que reúne crônicas elaboradas ao longo da carreira do autor.

 

O esquilo, na neve, só encontrava a estranheza. Via tudo branco, gelado, vazio e constatava: estava atrasado para seu longo sono de inverno. Os flocos de gelo caíam antes de ele conseguir subir em uma árvore e proclamar a propriedade de um buraco.

Esquiou sobre as duas patas traseiras até a árvore mais próxima. Esquivou-se da coruja prestes a acordar e lhe encher de bicadas. Esquilou até a árvore seguinte. E de árvore em árvore, a solução encontrava-se perdida no bosque: todos os lugares possivelmente disponíveis já estavam indisponíveis.

Sentia o rabo congelar pelo a pelo. Apelou aos pulos por um casaco de pele. Então se deu conta de que também o cérebro talvez estivesse se congelando. Transfigurava-se em picolé de esquilo. Picolé skimo.

Se fosse esquimó, pelo menos, poderia juntar bolinhas de neve e formar um mini-iglu para passar as próximas semanas. Mas era somente um bichinho apagado em meio a tanto tom de branco, a tanta bronca mental que dava a si mesmo.

Conhecia a história da formiga trabalhadeira e da cigarra que passava o verão cantando e depois não tinha onde morar. Ouviu em algum quintal de alguma casa, na voz de alguma criança ou pai, ou mãe, ou pai da mãe, contando para a criança.

Nunca se importou com a moral da fábula. Não nevava no Brasil. No máximo, uma geada ou outra que o permitia se refugiar numa moita encrespada por gotas de orvalho. Só que, agora, as moitas eram subgêneros de freezer.

Lembrou-se da sua família. O pai esquilo, a mãe esquilo, o pai da mãe esquilo. Moravam numa árvore feliz de Gramado, gostavam da região, dos turistas, do cheiro de chocolate e das nozes que os turistas misturavam no chocolate. Mas já não os tinha perto.

Poderia formar uma nova família. Uma esposa esquilo ou um marido esquilo, não tinha preconceitos. Mas se considerava individualista demais para ter companhia até mesmo da solidão. Preferia viver por conta própria.

Pensou certa vez em bater na porta de algum chalé e pedir para ser adotado; mas a ideia de domesticação arrepiava as gengivas dentuças. E os arrepios continuavam, mesclando o frio e o medo de morrer de frio.

Seus olhos, petrificando o fluido lacrimal, detectaram, em súbito, uma esperança alaranjada. Na copa de uma nectarineira resistente, os galhos, encobertos pelas folhagens e pelas frutas congeladas, estavam com vagas para esquilos.

Sem entrar com pedido de usucapião, o esquilo ocupou o ambiente. Transformou os galhos em moradia; e a moradia, em aconchego. Roeu a casca, imergiu no espaço improvisado e o batizou de lar.

No primeiro sono, entretanto, sentiu um tremor. Acordou achando o cúmulo do tropicalismo desregulado a aparição de uma avalanche para acrescentar à nevasca. Tinha razão: não se tratava de um fenômeno natural, mas de uma decisão humana, descrita em eco – mais madeira para a fogueira da lareira.

O tronco se destroncou em anticlímax, curvando-se perante o homem, natureza cedendo à força cultural. O esquilo, sem paraquedas, acatou à queda cem vezes maior do que seu tamanho. Barulho silenciado pela camada de neve. Esquilo silenciado pela ânsia do luxo.

Meio quilo de carne revestida por pelo acastanhado se estirava, agonizante, sobre as nectarinas ainda presas aos galhos. O aspirante a lenhador, perspicaz, registrou a cena no smartphone, certo de que isso lhe renderia acessos numerosos em sua página virtual.

João Paulo Hergesel
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